Uma pesquisa liderada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) dá mais um passo para confirmar a segurança da vacinação de macacos contra a febre amarela. O procedimento está em estudo desde a epidemia que dizimou populações de primatas pelo país entre 2017 e 2019.
Segundo os cientistas, a medida pode ser uma estratégia importante para preservar espécies ameaçadas de extinção e proteger a biodiversidade. Além disso, tem o potencial de reduzir a transmissão silvestre da doença, desacelerando a expansão de surtos.
Considerando que a vacina da febre amarela é produzida a partir de um vírus “vivo” atenuado (que não causa doença), os pesquisadores realizaram testes para verificar se os mosquitos poderiam se infectar com o vírus vacinal após picar macacos vacinados.
“Analisamos quase 700 mosquitos, de diferentes espécies silvestres e ainda incluímos o Aedes aegypti. Nenhum se infectou após picar os macacos vacinados. Esses dados sugerem que a chance de haver transmissão descontrolada do vírus da vacina da febre amarela na natureza é muito baixa ou nula”, afirma o coordenador da pesquisa e pesquisador do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC, Ricardo Lourenço de Oliveira.
Publicados na revista científica ‘Viruses’, os resultados reforçam que a vacinação de primatas, cativos ou de vida livre, contra a febre amarela é uma estratégia de saúde pública segura.
A pesquisa foi realizada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) em parceria com o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ), ligado ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea).
“Era importante observar como o vírus vacinal se comporta em mosquitos silvestres que picam macacos na fase virêmica da vacina [quando há circulação do vírus vacinal no sangue]. O resultado mostra que, realmente, o vírus vacinal não chega à glândula salivar dos mosquitos”, comenta o assessor científico de Bio-Manguinhos e autor da pesquisa, Marcos Freire.
“Esse resultado complementa e valida ainda mais as respostas que temos observado nos ensaios sobre a vacinação de primatas”, completa o diretor do CPRJ e também autor do estudo, Alcides Pissinatti.
Investigação necessária
Os estudos sobre a vacinação de macacos começaram em meio à epidemia de febre amarela que ocorreu entre 2017 e 2019. O surto alcançou o litoral do Sudeste, atingindo áreas onde a doença não era registrada há cerca de 80 anos.
Além de provocar centenas de mortes humanas, a infecção devastou populações de primatas. Apenas no Rio de Janeiro, foram notificadas 1.177 epizootias, como são chamados os episódios de adoecimento de macacos, que podem levar a óbito até dezenas de animais. Espécies em risco de extinção, como os micos-leões-dourados, foram impactadas pelo surto.
Realizados por Biomanguinhos em parceria com o CPRJ, os primeiros ensaios mostraram que a vacina humana contra a doença induz a produção de anticorpos e não provoca efeitos colaterais graves nos primatas brasileiros testados, que são muito sensíveis à infecção natural provocada pelo vírus da febre amarela. Os resultados levaram à expansão das pesquisas, incluindo iniciativas para vacinação de animais em cativeiro e de vida livre, em áreas de preservação.
Neste contexto, surgiu uma pergunta: haveria possibilidade de mosquitos silvestres se infectarem após picar os primatas vacinados e transmitirem o vírus da vacina para outros macacos?
A pergunta leva em consideração que a vacina da febre amarela é produzida com um vírus atenuado, porém infectante, ou seja, capaz de se replicar em células de vertebrados e invertebrados. Após a injeção em humanos, esse vírus circula na corrente sanguínea durante alguns dias. Por ser atenuado, o vírus vacinal não causa doença, mas ativa o sistema imune, prevenindo o adoecimento no futuro.
A linhagem viral atenuada usada para fabricação da vacina da febre amarela no Brasil é chamada 17DD. Replicado em laboratório, o vírus se mantém geneticamente estável. No entanto, se fosse transmitido de forma descontrolada na natureza, ele poderia sofrer mutações. Neste caso, um dos riscos seria o vírus perder a atenuação e passar a causar doença.
“Quando a vacina da febre amarela foi desenvolvida, nos anos 1930, a preocupação principal era a circulação da doença na área urbana, onde o mosquito Aedes aegypti transmite o vírus de uma pessoa para a outra. Naquela época, foi feito um estudo que demonstrou que o Aedes não era capaz de transmitir o vírus da vacina”, explica Ricardo.
“Porém, atualmente, no continente americano, a febre amarela circula apenas no ciclo silvestre. Os mosquitos que transmitem o vírus na floresta, entre os macacos, são dos gêneros americanos Haemagogus e Sabethes, que são muito diferentes do Aedes, oriundo da África. Era imperativo fazer uma nova pesquisa”, completa o pesquisador.
Para se aproximar ao máximo das condições reais, o estudo contemplou duas espécies de mosquitos Haemagogus (Hg. leucocelaenus e Hg. janthinomys/capricornii) e duas espécies de Sabethes (S. albiprivus e S. identicus). Mosquitos Ae. aegypti também foram incluídos nos ensaios para permitir a comparação com os experimentos realizados nos anos 1930.
Os mosquitos foram analisados após picar micos-leões de três espécies imunizados com a vacina da febre amarela contendo o vírus 17DD. O vírus vacinal não foi encontrado no corpo de nenhum dos 689 insetos analisados, confirmando que não houve infecção.
Os pesquisadores ainda foram além: alimentaram 156 mosquitos artificialmente com sangue infectado com o vírus vacinal para constatar ou não a possibilidade de transmissão. Apenas um mosquito, que foi alimentado com uma concentração viral superior à encontrada no sangue dos macacos vacinados, apresentou infecção. Mesmo assim, o vírus não foi detectado na cabeça do inseto, indicando que ele não se disseminou no organismo e não chegou até as glândulas salivares. Logo, não poderia ser transmitido.
De acordo com Ricardo, dois fatores podem contribuir para que o vírus vacinal não seja transmitido pelos mosquitos.
“Observamos que a vacina da febre amarela produz uma viremia [concentração de vírus no sangue] menor do que a infecção natural nos primatas. Essa viremia não favorece a infecção dos mosquitos. Além disso, características genéticas do vírus atenuado devem reduzir a capacidade de infecção”, pondera o entomologista.
Proteção para micos-leões e bugios
Atualmente, micos-leões-dourados e bugios estão no foco de pesquisas sobre vacinação de macacos. Encontrados exclusivamente na Mata Atlântica e ameaçados de extinção, os micos-leões-dourados perderam mais de 30% de sua população devido à epidemia de febre amarela, segundo uma pesquisa publicada em 2019.
Já os bugios são considerados um dos grupos mais sensíveis ao vírus. Um artigo que revisou dados sobre a epidemia apontou que estes animais responderam por cerca de 30% entre mais de 3.500 óbitos de primatas confirmados no país no período de 2016 a 2019.
No Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, os primeiros ensaios sobre a vacinação de macacos foram realizados com bugios e com três espécies de mico-leão: dourado, da cara dourada e preto. Os pesquisadores de Biomanguinhos e do CPRJ observaram a segurança e a capacidade da vacina humana para induzir a produção de anticorpos nos animais, considerando diferentes doses.
A partir dos resultados positivos, foi iniciado um estudo para vacinação de micos-leões-dourados na área da Reserva Biológica de Poço das Antas, nos municípios de Silva Jardim e Casimiro de Abreu, no Rio de Janeiro. Desde 2021, o projeto já imunizou aproximadamente 150 micos.
Dezenas de bugios também foram vacinados em pesquisas no Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. Os estudos são realizados por diversas instituições científicas e entidades que trabalham com a preservação de primatas, em parceria com Bio-Manguinhos, que é responsável pela produção da vacina da febre amarela no Brasil.
Segundo Freire, que está à frente das pesquisas na unidade da Fiocruz, o acompanhamento dos animais vacinados, em cativeiro e na natureza, será a base para validar a segurança e a eficácia da imunização.
“A vacina não vai impedir os casos de febre amarela entre macacos em geral, porque não é viável capturar e vacinar todos os animais. Porém, pode beneficiar primatas em alto risco, de espécies muito ameaçadas. Também os animais mantidos em zoológicos e centros de manejo, que estão expostos à infecção por causa da proximidade com florestas”, explica o veterinário.
O coordenador do CPRJ ressalta a importância de proteger os animais.
“Houve uma perda muito significativa de primatas na natureza pela febre amarela. A biodiversidade terá um ganho enorme se conseguirmos vacinar os animais de vida-livre nos nossos trabalhos de campo e aqueles criados em cativeiro. É importante perceber que a saúde é única. Quando fazemos a defesa do animal e do ambiente, fazemos a defesa dos humanos também”, enfatiza Pissinatti.
“De fato, o vírus da febre amarela depende da existência de macacos não-imunes para circular numa floresta. Ao não se infectarem com o vírus selvagem, os macacos vacinados passam a funcionar como um fator limitador da transmissão silvestre e desacelerador da expansão das epidemias, ajudando, indiretamente, a reduzir chances de infecção de humanos”, completa Ricardo.
As informações são do Instituto Oswaldo Cruz.