O contato com água de enchente é um potencial vetor de diversas infecções bacterianas e virais como gastroenterites, infecções de peles e de outras partes do corpo, hepatite A, toxoplasmose, leptospirose e tétano causadas pelo contato direito ou pela ingestão de água e de alimentos contaminados. As áreas de enchentes carregam também potenciais riscos químicos, físicos e biológicos para humanos e animais – causados, em grande parte, pelo contato com resíduos químicos, correntes elétricas e pela fuga de animais selvagens, tais como cobras, aracnídeos e roedores, que tentam sobreviver se abrigando em áreas secas.
“As águas de enchente podem carrear resíduos químicos das indústrias, detritos de construções, de criação de animais e de esgoto, levando à contaminação de rios, moradias e caixas d’água, resultando em comprometimento da água potável e dos alimentos. Além disso, o risco de exposição a choques elétricos por cabos soltos em meio à água das enchentes é bem elevado, entre outras situações perigosas”, explica o infectologista e gestor médico de ensaios clínicos do Instituto Butantan, Érique Miranda.
1- Evite contato com água contaminada
A falta de água potável e de refrigeração em áreas alagadas aumenta o risco do consumo de água e de alimentos contaminados. Até mesmo a água da caixa d’água pode ter sido contaminada durante a enchente e ela acaba sendo usada para tomar banho, para beber e cozinhar e se torna mais um vetor de contaminação. “A água da enchente é vetor de várias bactérias e vírus transmissores de doenças que podem se tornar crônicas ou levar à morte pessoas mais vulneráveis. Em caso de febre, diarreia, vômitos e desidratação, procure por atendimento médico o quanto antes”, explica o infectologista.
O ideal é evitar o contato direto com a água da enchente, principalmente em caso de feridas aparentes, que é por onde os microrganismos podem penetrar e causar as infecções de partes moles (músculos, tendões, vasos sanguíneos) ou mesmo a leptospirose. Mas se for inevitável, cubra mãos e pés e, sobretudo, as feridas, usando botas e luvas de borrachas e óculos de proteção. Sem estes materiais disponíveis, use sacolas plásticas bem amarradas. O uso de curativos à prova d’água pode ajudar a vedar os ferimentos também.
“Evite entrar na água que possa estar contaminada com esgoto ou produtos químicos tóxicos. Isso inclui rios, córregos ou lagos contaminados pelas enchentes”, ressalta Érique.
Uma das reações mais imediatas do contato com a água contaminada é a diarreia. Lavar as mãos com água e sabão com frequência pode evitar o contato com os microrganismos que desencadeiam o desarranjo intestinal. Em crianças, é importante reforçar a lavagem de mãos principalmente antes das refeições e não deixar que elas brinquem nas áreas inundadas, ou usem brinquedos que não tenham sido desinfectados.
2- Cuidados com a água para consumo
Caso observe alguma alteração na água da torneira, como odor e/ou coloração diferente do habitual, o Ministério da Saúde recomenda entrar em contato com a empresa responsável pela distribuição da água e/ou a Secretaria de Saúde do seu município.
Até ter algum suporte, a alternativa é filtrar e ferver a água antes de beber. Se não for possível fervê-la, trate a água para consumo com hipoclorito de sódio (2,5%). Adicione duas gotas do produto para cada litro de água e deixe repousar por pelo menos 30 minutos para ocorrer a eliminação das bactérias.
3- Não consuma certos alimentos
Não consuma alimentos com cheiro, cor ou aspecto fora do normal, isto é, que estejam úmidos, murchos ou mofados. Nesta lista entram leite, carne, peixe, frango, ovos crus ou malcozidos, principalmente aqueles que entraram em contato com a água de enchente.
Evite o consumo de frutas, verduras e legumes escurecidos ou estragados que entraram em contato com a água de enchente. Assim como alimentos refrigerados e que tenham ficado por mais de duas horas fora da geladeira, principalmente carne, frango, peixe e sobras.
Também devem ser descartados alimentos industrializados com validade vencida; alimentos com embalagem ou tampas estufadas; e alimentos embalados de vidro, lata, caixa tipo “longa vida” e plásticos que estejam abertos ou danificados.
4- Cuidados no contato com animais peçonhentos
Ao encontrar animais peçonhentos ou de grande porte em áreas alagadas, não tente retirá-los do local sozinho. Você pode se ferir ou acabar cometendo um crime ambiental. Esses animais, inclusive os peçonhentos, são protegidos por lei. Para quem está enfrentando as enchentes de maio no Rio Grande do Sul, a Comissão de Animais Silvestres, Exóticos e de Desastres do estado (CRMV-RS) orienta que se entre em contato com a Polícia Ambiental (Patram) no número (51) 98501-6672 ou com a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema-RS) no (51) 98593-1288 para a remoção do animal e para receber outras orientações.
Em caso de picada de animal peçonhento, solicite atendimento médico o mais rápido possível para o recebimento do soro antiveneno. “Mantenha a pessoa que foi picada deitada e em repouso. É importante evitar que a vítima se locomova por seus próprios meios. Mantenha o membro picado mais elevado que o restante do corpo. Lave o local da picada com água e sabão e nunca faça torniquete ou garrote no local”, diz o infectologista.
5- Cuidados na limpeza da casa e de estabelecimentos
Após a liberação da área pelas autoridades competentes, o Ministério da Saúde recomenda retirar a lama e desinfetar o local utilizando luvas e botas de borracha e produtos sanitizantes como hipoclorito de sódio (2,5%) ou água sanitária para reduzir o risco de infecções.
Na lavagem de chão, paredes e objetos caseiros, a desinfecção deve ser feita com água sanitária na proporção de 1 litro de hipoclorito de sódio (2,5%) ou água sanitária para 4 litros de água, deixando agir por 30 minutos. É preciso também realizar a desinfecção da caixa d’água, que o Ministério da Saúde ensina em uma cartilha.
6- Evite riscos químicos e biológicos
Situações de emergência ou calamidade envolvem também riscos biológicos, químicos e físicos, tais como eletricidade e insumos industriais que devem ser manejados somente por membros da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros.
Um exemplo é o cuidado na remoção de baterias de automóveis. Mesmo que tenham tido contato ou estejam submersas em água de enchente, as baterias dos carros ainda podem ter carga elétrica. Use luvas isolantes e evite entrar em contato com qualquer ácido que possa ter derramado da bateria danificada do carro. Em caso de inundação, recomenda-se desligar a energia elétrica e o fornecimento de gás em sua casa para evitar incêndio, eletrocussão ou explosões.
Nunca toque em um cabo de energia caído e evite o contato com linhas elétricas aéreas durante a limpeza e outras atividades. Não dirija se houver linhas de energia caídas na água. Se alguém for eletrocutado, o Corpo de Bombeiros (193) deve ser acionado.
7- Cuidado após queda de temperatura
Pessoas desabrigadas em meio ao clima frio correm maior risco de sofrer de hipotermia em ambientes externos cuja temperatura seja menor do que 13°C. O quadro se caracteriza pela queda da temperatura corporal para abaixo de 35°C devido à exposição prolongada ao frio. A hipotermia pode comprometer funções fisiológicas, dos sistemas respiratório e cardiovascular, além do sistema nervoso e do próprio metabolismo, podendo ser fatal. Nestes casos, é importante ter suporte médico para reaquecer a vítima.
8- Quando procurar um médico
Em áreas inundadas aumenta ainda o risco de contrair tétano ao perfurar a pele com materiais pontiagudos, e de leptospirose, ao ter contato com água contaminada com rejeitos ou com urina de animais, sobretudo ratos.
Se uma ferida apresentar vermelhidão, inchaço ou secreção, procure atendimento médico imediato, ou se houver um objeto estranho, como madeira ou metal, incrustados na ferida. “Vale o mesmo em caso de mordida de cachorro, perfuração por objeto sujo, ou se uma ferida antiga mostra aumento da dor, inchaço, vermelhidão e secreção e se ocorrer febre”, explica Érique.
O risco de transmissão de hepatite A e de toxoplasmose também aumentam, pois ambas são transmitidas pelo consumo de água e alimentos contaminados.
A hepatite A, causada pelo vírus A (HAV) da hepatite, é transmitida por meio do contato de água onde há fezes, tendo grande relação com alimentos contaminados, como vegetais mal lavados. Os principais sintomas são febre, dores musculares, mal-estar e fadiga, podendo evoluir para vômitos, dor abdominal, diarreia ou constipação de 15 até 50 dias após a infecção, segundo o Ministério da Saúde. Não há um tratamento específico, mas não é recomendada a automedicação – certos remédios podem ser prejudiciais ao fígado, agravando o quadro da doença.
Já a toxoplasmose é transmitida pelo protozoário Toxoplasma gondii através do consumo de alimentos ou água contaminados. Em 90% dos casos é assintomática, mas nos demais pode apresentar um quadro clínico prolongado por semanas, com febre, lesões avermelhadas na pele, aumento de gânglios, fígado e baço, dor muscular e de cabeça.
“Em todos esses casos, deve-se procurar a atenção médica imediatamente, sendo importante a avaliação de um especialista em doenças infecciosas para casos mais complexos, uma vez que o tratamento inespecífico ou o tipo de antibiótico a ser utilizado varia bastante de uma hipótese diagnóstica para outra”, afirma Érique.
Durante o atendimento médico, é fundamental contar sobre a exposição prévia à enchente, para ajudar na acurácia do diagnóstico.
“É importante relatar ao profissional de saúde a exposição recente à enchente até mesmo 21 a 30 dias depois, a fim de que o especialista faça as hipóteses corretas. Em situações de enchente, é necessário que o médico fique sabendo da história recente de exposição às águas contaminadas”, ressalta Érique.
Nestes casos, o especialista precisa estar atento ao tratamento correto para infecções de partes moles polimicrobianas não usuais, porém comuns após enchentes.
“Deve ainda avaliar adequadamente as gastroenterites para introduzir o tratamento específico mais adequado; ficar atento à possibilidade de leptospirose, sobretudo em casos de febre, coloração amarelada da pele e dor muscular sobretudo nas panturrilhas, e ficar atento ao status de vacinação contra o tétano, geralmente atrasada em adultos e idosos”, conclui o infectologista.
Fontes:
Centers for Disease Control and Prevention
Soft tissue infections following water exposure
Ministério da Saúde – Saiba como agir em caso de enchentes
Animal Disposal – CDC
Matéria do Portal do Instituto Butantan.